Eram tempos sombrios em Artemísia. A Capital funcionava a toda, mas nas vilas ao sul a realidade era outra.

Em Lavrádio, onde o algodão era cultivado, grupos extremistas cresciam dia após dia com o descaso do governo e a opressão da regência. O mais famoso deles era comandado por Ernesto Gravin, mais conhecido como Flecha. Carruagens carregadas de ouro eram saqueadas e o ouro era entregue ao povo que naqueles tempos passava fome. Eles atacavam também membros da regência e diplomatas que faziam negócios por ali, matando todos que conseguiam.

O bando de Flecha estava acampado na floresta. A pedido da regência de Lavrádio o governo havia mandado o exército atrás deles; no entanto, eles ainda não haviam sido pegos. Outros bandos que também lutavam pela causa foram exterminados.

Era uma clara manhã de primavera e o vento fazia as flores balançarem lentamente. Uma pétala se desprendeu e foi carregada até pousar na cabeça de um garotinho que brincava na entrada de uma barraca. À sua volta fileiras de bolos de barro estavam sendo fatiados.

– Experimenta, mãe! – disse o garoto, entregando-lhe um pedaço.

– Está realmente uma delícia, querido. Mas agora precisamos arrumar as coisas para partirmos – ela disse pesarosa. Gostaria de deixar o filho brincar à vontade. Gostava de olhá-lo enquanto se divertia. Os olhos cor de carvão do garoto brilhavam intensamente com uma doçura e ingenuidade presentes nas crianças. – Seu pai já vai chegar. Temos que estar prontos – disse ela, pegando-o pela mão e levando-o para dentro da barraca.

O acampamento já estava desmontado, e os últimos raios de sol brilhavam sobre as árvores quando Flecha chegou. Sentia o corpo pesar e só queria poder fechar os olhos por alguns instantes, mas antes teria que levar o bando para um lugar seguro. Eles iriam cavalgar até Miramar, onde Flecha colocaria num barco seu filho, esposa e os demais que quisessem ir em segurança para fora de Artemísia. Todo o cansaço se desfez ao ouvir um sonoro:

– Papai! – o garotinho gritou animado.

Flecha abaixou-se e deu-lhe um forte abraço.

– Cícero, meu rapaz! – disse o pai. – Vi que fez um bom trabalho por aqui protegendo sua mãe! – brincou Flecha, bagunçando o cabelo do filho.

  • Sim, papai! E fiz bolo também! – contou a criança, sorridente. – Mamãe comeu tudo!

Antonela veio ao encontro do filho e do marido. Seu olhar preocupado pousou sobre o segundo. Ele estava bem mais magro do que quando se casaram. As olheiras estavam escuras e fundas. Parte do rosto de Flecha carregava uma grande cicatriz feita por um machado que um soldado brandia numa luta. Ela olhou suas roupas tão gastas, mas tão características. Ele e seu bando, homens e mulheres, vestiam-se com calças de couro, camisas compridas de algodão e coletes também de couro por cima. Preso à cintura havia um cinto grosso no qual ficava presa a espada e algumas facas, além de um cantil. Flecha tinha ainda uma aljava nas costas e o arco atravessado ao peito. Eles não carregavam muitas coisas, mas o básico para se defender e sobreviver, se fosse preciso, estava sempre à mão. Os que tinham cabelos longos como Antonela  usavam tranças ornamentadas com flores silvestres ou tiras de couro. Flecha levantou-se e beijou a esposa. Ela sorriu ao tocar-lhe a face carinhosamente enquanto olhava para seus olhos que, assim como os dela, eram da cor de suas roupas empoeiradas.

– Precisamos ir, minha flor! – ele disse.

Ela apenas acenou. Eles montaram, e logo depois Cícero pediu para cavalgar com o pai, que o puxou com carinho e afeto para perto de si.

– Papai! Por que precisamos sempre abandonar os lugares para onde vamos? – perguntou o garotinho.

O pai, com um olhar de pesar, demorou um instante antes de responder.

– Bem, meu filho, no mundo que vivemos nem sempre as pessoas fazem as coisas certas. E muitas vezes temos que lutar por quem não pode. Lembra daquelas crianças que visitamos e que não tinham o que comer?

– Lembro, sim, papai. Elas ficaram felizes com a caça que levamos! – recordou Cícero.

– Várias pessoas estão na mesma situação, porque outras pessoas têm comida e ouro de sobra e não querem dividir. As plantações de algodão geram muita riqueza, mas essa riqueza não vai para o povo que planta. Então nós pegamos dessas pessoas que não querem dividir e entregamos a quem precisa.

– Mas isso não é uma coisa boa, papai?

– É, sim, meu filho! Escolha sempre lutar por quem precisa e isso fará de você uma boa pessoa, independente do que pensam os outros. No entanto, essas mesmas pessoas que têm muito e não querem dividir pensam que estão certas em não dividir e querem que nós paremos de ajudar os que precisam. Como eles têm poder, usam recursos como o exército para sumir com pessoas como nós. Estamos sempre nos mudando para que eles não nos peguem e não acabem com a nossa luta pelo povo.

– Eles deviam conversar antes, papai! Assim eles gostariam de nós! Todas as pessoas que conhecemos gostam muito do senhor  – disse Cícero, fazendo os olhos do pai se encherem de lágrimas.

– Infelizmente as coisas não funcionam assim, meu filho. Um dia você entenderá – Flecha respirou fundo e, depois de um breve silêncio pensativo, continuou. – Mas não se preocupe agora. Vamos para um lugar seguro longe desses que não nos querem aqui! – disse, encerrando o assunto.

Um tempo depois da conversa ter acabado, Cícero cochilava encostado em seu pai, quando ouviram barulhos na mata que não vinham da sua comitiva silenciosa. O chão parecia tremer ao redor da trilha. Flecha fez sinal para pararem. Escutou por um momento, e o som ficou mais alto e claro. Eram cascos de cavalos.

Alguém vinha atrás deles. Mais uma vez o chefe do bando fez um sinal e dois homens foram em direção ao barulho por trilhas separadas. O resto correu a galope seguindo Flecha. Galoparam o mais rápido que conseguiram até a entrada de uma pequena propriedade.

  • Todos para dentro daquela casa! – ordenou ele. 

Cícero acordou enquanto todos iam em direção à construção à frente. Flecha desceu do cavalo deixando o filho ainda montado e bateu à porta. Uma senhora atendeu assustada.

– Não temos tempo para explicações. Preciso que nos deixe entrar.

Ela apenas abriu caminho e todos entraram: cavalos, amazonas e cavaleiros.

Ouviram-se vozes alteradas e os cascos que passavam rápido na entrada da casa. Cícero estava com os olhinhos arregalados e quase caiu do cavalo com os barulhos que vieram do lado de fora. Alguém estava batendo ferro com ferro; provavelmente uma luta de espadas que não durou mais que alguns minutos. Se era um dos homens de Flecha, este já não mais vivia. E voltou-se a fazer silêncio.

– A senhora tem outra saída? – perguntou Antonela à dona da casa.

– Por aqui, minha filha! Não deixe que esses homens peguem vocês! – disse a senhora, segurando-a pela mão.

– Pode ficar tranquila! – disse Antonela, apertando a mão da senhora entre as suas. Flecha entregou-lhe uma bolsinha. Ao abrir, a senhora viu que estava cheia de moedas de ouro. Seus olhos se encheram d’água e ela beijou a mão do homem. Ele subiu no cavalo curvado e fez outro sinal para o bando. Todos seguiram para a porta e, assim que ela se abriu, saíram a toda velocidade tomando um caminho diferente do que vieram.

Passavam feito raios por entre as árvores e corriam a toda em direção ao litoral. No entanto, pouco antes de chegarem foram emboscados. Assim que diminuíram o ritmo da corrida, soldados começaram a sair por todos os lados. Atiravam flechas que passavam zunindo rente as suas cabeças. Alguns companheiros começaram a cair, e Flecha, com seu filho sentado à sua frente, tirou o arco das costas e começou a contra-atacar. Com apenas um tiro ele atingiu três soldados que tombaram imediatamente. Seus companheiros fizeram o mesmo. Com espadas e machados, uma sangrenta luta começou ali. Os cavalos foram sendo atingidos e os cavaleiros e amazonas tiveram que lutar do chão. Já não podiam dar mais um passo sem ter que brandir a sua arma de luta. Antonela brigava ao lado do marido. Os dois, ainda montados, tentavam passar aquele cerco para salvarem Cícero. Ela percebeu, um segundo antes de Flecha, que um dos dois não poderia se salvar. Pulou, então, de seu cavalo e gritou:

  • Leve Cícero daqui!

Flecha sabia que sua esposa era boa de briga, por isso ele não desperdiçaria o tempo que ela ganharia para ele salvar Cícero. Faria o que fosse necessário para salvar o filho e depois voltaria para ajudar os companheiros. Correu o mais rápido que pôde. Alguns homens abandonaram a luta e foram atrás dele, mas ficavam para trás. Flecha entrou na mata que se formava ali perto. Depois de um tempo, galopando com cuidado, desceu do cavalo.

– Cícero! – chamou ele com firmeza. Os olhinhos do garoto o encaravam apavorado. – Chegou a hora de provar que é um homem do bando e mostrar que sabe ser um cavaleiro – disse ele, tentando sustentar o olhar do filho.

– Pode deixar, papai! Eu sou um homem do bando – disse o garoto, aprumando o corpinho sobre o cavalo.

– Quero que siga exatamente o que eu vou dizer agora, está bem? – perguntou-lhe, jogando uma capa sobre o corpo do garoto.

– Está bem! – respondeu Cícero.

  • Vá por esse caminho – apontou para uma trilha. – Ele o levará de volta a Lavrádio. Vá direto para a casa da vovó quando chegar lá. E não diga a ninguém quem é você ou de onde vem até que esteja perto de sua avó. Diga a ela que vamos buscar você em breve. Entendido? – perguntou Flecha, apertando as mãozinhas do filho.

A criança apenas balançou a cabeça em afirmativa. Flecha puxou-o para dar-lhe um beijo e voltou a ajeitar o garoto na cela. Deu um assobio para o cavalo, que disparou na direção da trilha que ele havia apontado. Cícero se manteve firme na cela, e o cavalo o ajudou quando sem querer adormecia. Chegou à entrada da vila com a lua ainda brilhando no alto. Não via muito sua avó, mas as vezes que estavam juntos eram sempre especiais. E ela tinha uma bela casa ali. Não foi difícil encontrar. Uma senhora de tranças brancas, vestido simples e olhos cor de carvão estava debruçada na janela e viu o cavalo se aproximar. Levou uns segundos para reconhecer a criança e sobressaltou-se ao notar que era o neto.

– Cícero, é você?

  • Sou eu, vovó Nilde! Papai me disse para ficar aqui até que venha me buscar – contou Cícero. 

A senhora, então, saiu ao encontro do neto e ajudou-o a descer do cavalo. Colocaram o cavalo no estábulo e ela foi cuidar do garoto. Cavalgar todo aquele tempo tinha feito suas perninhas adormecerem e ele sentia dores pelo corpo. A avó preparou-lhe um banho quente e um prato de sopa. O garoto, confortado em seu colo depois de comer, contou-lhe o que tinha acontecido naquele dia, e a senhora ficou muito preocupada.

Não demorou muito para que a criança pegasse no sono. A avó voltou à janela depois de colocá-lo na cama. Olhou para o céu e viu uma fumaça que vinha do centro da vila. A fumaça cobria a lua de uma forma que a fez arrepiar. Ela fechou a janela e juntou-se ao neto, mas sem conseguir dormir bem até o dia voltar a clarear.

Na manhã seguinte, logo cedo, os sinos da vila começaram a badalar. E todos ali já sabiam que quando isso acontecia algum pronunciamento da regência aconteceria em poucos instantes na praça da cidade.

Nilde deu de comer ao neto, colocou roupas limpas no garoto, penteou seus cabelos e levou-o com ela até a praça. Algo coberto por um pano estava colocado bem no meio do local. As pessoas estavam em silêncio. Não sabiam bem o motivo, mas ninguém se permitia falar. Uma enorme fogueira estava quase extinta e o cheiro de carne queimada ainda permeava o local. Não era algo nada agradável e deixava as pessoas ainda mais apreensivas.

Cícero reconheceu algumas crianças com quem brincara na última vez que esteve ali, e acenou para elas, que retribuíram o gesto alegremente. Apenas elas pareciam sorrir em toda a praça. Um homem subiu ao lugar mais alto e disse:

  • Povo de Artemísia, da vila de Lavrádio, é com grande alegria que venho trazer as boas novas a vocês – ele encarou a população com um estranho sorriso nos lábios. – Finalmente a luta acabou. Dias de paz chegam para todos, e para nós não seria diferente. Com a ajuda do exército do rei finalmente pegamos os últimos rebeldes que causavam desordem na nossa amada vila.

Nilde, sentindo que o que vinha não era algo bom, puxou Cícero para que saíssem dali. No entanto, ela não foi rápida o bastante.

  • CONTEMPLEM a pirâmide dos derrotados! – gritou o homem, puxando o pano.

Debaixo dele estavam as cabeças do bando de Flecha decapitadas e empilhadas umas sobre as outras formando uma pirâmide. A população chocou-se com a cena, e Cícero não deu mais nenhum passo. A avó parou ao sentir a resistência do neto e virou-se, encarando diretamente o rosto desfigurado de sua filha que se encontrava no meio da pirâmide. Seu genro estava no topo. Os olhos da avó se arregalaram com a cena. Sentiu que tudo que estava dentro dela sairia pela boca, inclusive sua alma. A fogueira – ninguém precisa dizer – eram os corpos já carbonizados daquelas pessoas.

Nilde forçou-se a respirar para tirar o neto daquele lugar. Ele continuava encarando as cabeças ali empilhadas. Nada se passava em sua mente. Não sabia quem era, qual era seu nome, onde estava ou por qual motivo estava ali. As cabeças começaram a girar em sua visão. Ele caiu desmaiado, enquanto a praça se desesperava e as pessoas começaram a gritar e chorar descontroladamente.

Cícero passou dias desacordado com febre alta e dizendo palavras sem sentido durante o sono. Nilde não saiu do lado do neto, apesar de passar mal todas as vezes que lembrava da cena na praça; e não eram poucas por dia.

Ela já tinha decidido que se o neto sobrevivesse, iria se mudar com ele para a Capital. Não poderia continuar ali. Passar por aquela praça e ter todas aquelas lembranças seria muito difícil.

Via nitidamente a pirâmide de cabeças em sua mente. Lembrava-se de ter segurado o neto desmaiado e carregado o garoto para longe dali. Teve forças para chamar o curandeiro para ver Cícero. E quando este disse que não podia fazer nada a não ser rezar, ela deixou-se cair em uma cadeira e ficou ali por bastante tempo até criar forças para preparar algo que pudesse sustentar o corpo frágil do neto. Fez uma sopa e se serviu também, mas nem uma colherada desceu por sua garganta.

Pensar na crueldade que os seres descendentes de humanos eram capazes fazia suas entranhas se revirarem. Ela passaria a vida com a certeza de que não valia a pena lutar. “Lutar para ter um final desses? Para que outros se sintam no direito de acabar com a vida de uma criança dessa forma?”. Ela protegeria o neto de agora em diante. E levasse o tempo que fosse preciso, ela faria que ele tivesse a vida que merecia.

Outro dia de primavera brilhava em Artemísia e Nilde, que dormia sentada em uma cadeira, assustou-se com um toque gelado em seu rosto. Eram as mãozinhas do neto. Nilde o pegou no colo e o abraçou. A felicidade quase a dominou por ver o neto desperto. Mas lembrou-se novamente da tragédia que o colocara de cama e as lágrimas rolaram por seu rosto.

– Não chore, vovó – disse Cícero.

Nilde olhou nos olhos do neto. O brilho que antes havia nos olhos do garoto não existia mais. Uma expressão pesada tomava conta de um rosto tão novo.

– Eles vão se arrepender do que fizeram!

– Não diga isso, criança! – a avó não podia imaginar uma reação tão dura numa criança de apenas sete anos. – Você tem muito que aprender sobre a vida e você sabe que aquilo que os seus pais faziam era perigoso!

– Não, vovó! Meus pais ajudavam o povo! Eles alimentavam as pessoas com fome e abrigavam quem precisava. Aqueles carniceiros, malditos, covardes é que são o povo mal e perigoso! – Cícero terminou a frase e caiu novamente desmaiado.

A avó ficou assustada com as palavras da criança, mas rezou para que tivesse sido apenas um devaneio dele lembrando de frases que ouvira de seus pais.

No fim da noite, Cícero estava acordado novamente e sendo a criança doce que a avó conhecia. Eles jantaram juntos e dias depois, com ele completamente recuperado, partiram para a Capital.