Era noite de fiar. O carregamento anual de algodão acabara de chegar de Lavrádio para Valedoce. As mulheres da vila já se preparavam. A primeira noite de fiar era dedicada à deusa, e todas se juntavam para trabalhar e festejar. Um banquete era preparado ao mesmo tempo em que ao redor de uma grande fogueira histórias eram relembradas.

Os tambores da vila anunciavam o início do trabalho festivo, e a fogueira flamejava no centro da praça. As mulheres, que vinham de todos os lados, enchiam o local e tomavam seus lugares.

Anahí vinha com a mãe. Seu rosto estampava um belo sorriso, mas suas mãos estavam trêmulas como na primeira vez que se sentou ao fiar. Sua mãe estendeu-lhe a mão e fez carinho na mão da garota. As mulheres estavam todas com vestidos, calças e camisas brancas, coroas de flores nas cabeças e os cabelos ao vento. Anahí havia feito sua própria coroa dessa vez e ficara feliz com o resultado das flores que ornamentavam seus cabelos cheios e pretos, num corte que chegava aos ombros.

– Estou nervosa por vovó! Ser a primeira a fazer a oração da noite e a puxar o cântico é realmente importante – disse a garota baixinho para a mãe.

– Não se preocupe, minha filha! Sua avó se preparou a vida inteira para isso. Para ela é a maior honra poder liderar todas nós nos caminhos da deusa.

Em toda a praça as mulheres de todas as idades dispuseram suas rocas. As que ainda eram bem pequenas brincavam entre si, mas nunca eram excluídas, pois desde o nascimento as mulheres de Valedoce sentiam o amor daquele grupo e eram convidadas a ouvir as histórias e contar as suas próprias. A troca de experiências era como elas aprendiam a ser a comunidade que eram. Antes de se sentarem, elas deram as mãos ao entorno da fogueira. Anahí estava com a mãe de um lado e a avó do outro, e estremeceu quando os tambores pararam no mesmo instante em que a voz da avó trovejou:

– Queridas irmãs, mais uma noite de fiar, enfim, chega. Foi um trabalho tranquilo até aqui e com a ajuda da deusa continuará sendo. Graças a ela, recebemos muito material para trabalhar e teremos mais um ano próspero a nossa frente. Vamos, então, agradecer.

Ó, deusa, mãe de todas e nossa mãe

Agradecemos por mais um ano farto

Obrigada por despejar em nós o seu amor 

E a sua bondade

Que essa nova estação venha celebrar as vidas que geramos

E trazer bênçãos sobre nós

Santifique nosso sangue criador

E nos faça fortes e resistentes

Traga compreensão e afeto aos nossos corações

Que estas mulheres se sintam seguras e acolhidas neste lugar 

E que o mal não atravesse os nossos portões

Que assim seja

Anahí sentia a força das palavras da avó. Não era uma oração pronta; as palavras vinham espontâneas. O corpo da garota tremia levemente e os pelos de sua nuca arrepiavam-se com as mudanças de entonação da avó. A energia do momento já fervilhava a alma.

Agora elas cantariam à deusa, e a ansiedade de se juntar ao coro a dominava. Os tambores voltaram a soar alto, e a avó começou mais uma vez, seguida por todas as mulheres na praça:

Fiadeira vem cantando 

Vem dançando fiadeira 

As flores novas vêm banhando

Com sua água de benzedeira

Na terra colocamos sementes

 E regamos com amor 

Lutaremos bem valentes

Se pela deusa preciso for

Nosso fio é  resistente

Suporta frio e calor

Nossa alma clemente

Vai tecendo toda dor

O teu sangue é valioso

Oh, irmã! Quem te falô?

Não é sujo e nem ruim

Dele só cresce vida no fim

Fiadeira vem cantando

 Vem dançando fiadeira

O seu ventre abençoando

Com o sangue da deusa guerreira

Não tropecem e não caiam

 Suas irmãs lhes dão a mão

Para que não se distraiam

E juntas dividam o pão

Mais uma vez a lua vem

Iluminando o fiar

O trabalho não se detém

Até a trama trançar

Enquanto cantamos e dançamos

Que a deusa proteja todas nós

Mostrando o caminho onde vamos 

Que a noite passa veloz

Fiadeira vem cantando

Vem dançando fiadeira

As flores novas vêm lavando

Com o sangue da deusa guerreira

Anahí cantava com os braços para o ar, os olhos fechados e uma expressão iluminada no rosto. Os tambores marcavam o ritmo e as vozes davam a melodia. Naquele momento todas elas eram uma: a deusa. O canto subia aos céus, exaltando a beleza de poder gerar uma vida, de ter escolhas sobre o próprio corpo e liberdade para cantar sobre ele, seus ciclos e exaltar a beleza de ser uma mulher. Artemísia ainda não era toda assim, mas pelo menos ali, onde os homens foram arrancados à força por conta da guerra, as mulheres comandavam não só a vila, mas também elas mesmas; além de criarem um lugar seguro umas para as outras.

A cantoria acabou em uma nota singela e prolongada. As mulheres saudaram a lua com uivos de alegria e sentaram-se, enfim, ao fiar. Algumas se levantaram e foram até a mesa de comidas, prepararam pratos com uma porção  e voltaram aos seus lugares.

Anahí buscou um prato para a mãe e outro para a avó. Ao voltar com o seu próprio, ouviu uma das moças começar uma história. A história contava uma lenda antiga sobre o primeiro sangue da deusa guerreira e como tudo floresceu em contato com o sangue sagrado.

Anahí amava essas histórias e aprendia através delas como seu próprio corpo era sagrado, como ela deveria cuidar e reverenciar um templo tão importante quanto o invólucro de sua alma.

Ainda ouvindo a história, e depois de ter comido metade das guloseimas que pusera no prato, ela começou a fiar. Pegou o primeiro tufo de algodão e com mãos hábeis começou o trabalho. Os tambores voltaram a bater… Outra música se iniciava e ela tecia no ritmo. A música foi crescendo e Anahí deixou-se sentir crescendo dentro dela também. Fechou os olhos por um instante. Estranhamente o som dos tambores foi abafado e ela começou a ouvi-lo como se estivesse longe. Abriu os olhos e pulou de sua roca ao notar que não estava mais na praça.

Anahí estava agora em um grande salão. Seu teto era tão alto que parecia o próprio céu. As paredes eram muito brancas com estranhos padrões em dourado que brilhavam como ouro. Os olhos da garota seguiram as linhas nas paredes até que elas encontraram o piso. Anahí olhou para os próprios pés e eles estavam em cima de algo como vidro. Ela podia ver a praça lá embaixo, onde as mulheres estavam fiando e cantando. Agora entendia por que os tambores pareciam estar tão longe. Seus pensamentos ainda estavam confusos. Onde era aquele lugar? Como ela fora parar ali? Só podia estar sonhando. Aquelas paredes deviam fazer parte de alguma história que ela ouvira e ficara na memória. Anahí nunca havia adormecido durante uma noite de fiar, por isso não pôde realmente acreditar no que sua mente lhe dizia.

Duas grandes portas no outro lado da sala foram abertas, e Anahí pôde ver quem entrava. Seus olhos se arregalaram e seu corpo começou a tremer fortemente. Sentia a garganta seca. Se precisasse da voz naquele momento, sabia que ela não sairia. Dúzias de amazonas entraram galopando pelo salão. Elas tinham um aspecto transparente como se fossem fantasmas. Anahí ouvia o casco dos cavalos batendo no vidro. Eles passaram por ela e desapareceram do outro lado da sala.

Em seguida, sentiu uma presença ainda mais forte e soube de imediato quem por ali passava. Quem atravessava as grandes portas era uma mulher. Ela era grande, vibrante, com olhos que pareciam ler o fundo da alma. Usava um vestido preto esvoaçante, preso por um espartilho de ouro. Estava descalça, e seus cabelos volumosos e encaracolados de tons em vermelho e branco estavam adornados por uma tiara também dourada.

– Olá, criança! – disse a mulher.

Anahí não pôde responder, mas se jogou no chão, prostrando-se.

– Levante-se! Temos muito o que conversar – continuou ela, estendendo a mão para Anahí que novamente assustou-se.

Anahí não ouvira os passos da mulher que, em um segundo, passara da entrada do salão para onde a garota estava.

– Venha, vamos nos sentar – e puxando Anahí do chão levou-a até uma espécie de divã que estava colocado no fundo do salão. – Ouça, criança, pois eu só vou falar uma vez – ela tinha uma voz doce e poderosa que conseguia acalmar e despertar pavor.

Naquele momento Anahí sentiu-se subitamente acalmar e ouviu com atenção.

– Do ventre do seu ventre nascerá uma criança. No entanto, os males do seu tempo tentarão impedi-la. Você precisa resistir e proteger a sua linhagem. Não espere que o mal bata a sua porta, pois ele virá, e se encontrá-la, tudo estará perdido. Não conte a ninguém o que estou lhe dizendo. As paredes têm ouvidos onde tudo parece silêncio. Leve esse amuleto – disse, passando uma fina corrente com um pingente amarelo em formato de borboleta pela cabeça de Anahí, até pousar em seu pescoço – e passe para sua filha. Ela terá que passar à filha dela, e assim até que a profecia se cumpra. As visões dessa noite são sempre reais. Acredite no seu coração! 

Dito isso, a mulher tocou Anahí entre as sobrancelhas e a garota fechou os olhos ao toque da deusa.

Anahí ouviu os tambores soarem fortes outra vez. Ao abrir os olhos estava de volta à praça. Respirou fundo por um momento, piscou várias vezes e tocou o pingente que pendia de seu pescoço. Com aquela prova ali, não tinha como ela ter simplesmente sonhado. Havia realmente encontrado a deusa. Sentiu em seu coração que essa era a última noite de fiar que passaria sobre a proteção daquelas irmãs.

De repente, notou algo quente entre suas pernas, e as lágrimas vieram aos olhos quase ao mesmo tempo em que tomou consciência que seu sangue havia finalmente descido. Anahí completara quinze anos e, tendo experienciado quinze noites de fiar, ela sabia que o sangue poderia não vir, e isso também seria um plano da deusa. No entanto, agora sabia qual era realmente sua missão de vida. Levantou-se para dançar com as outras mulheres que dançavam em volta da fogueira enquanto descansavam do trabalho.

A mãe de Anahí notou a pequena mancha em seu vestido e mostrou à avó da garota. Ambas se juntaram à dança da jovem e foram festejar o início de mais um ciclo até que o sol nascesse. Assim, mais uma noite de fiar estava sendo gravada na memória daquelas mulheres e, com as bençãos da deusa, elas trabalharam e festejaram pela última vez na paz que haviam criado naquele lugar