No final da última era, Artemísia vivia um tempo de paz e prosperidade. A praça principal da Capital estava sempre cheia de mercadores de todos os cantos daquele mundo. Eles vinham pelo mar, e o porto teve de ser expandido. Grande parte da baía ficava repleta de navios mercantes.

Todo comércio do reino de Artemísia ganhava com esse movimento. O algodão, artigo raro pelo mundo e muito bem cultivado em Artemísia pelas hábeis mãos dos descendentes dos elementais da terra, encontrava facilmente seus compradores. Não era um algodão comum. Quando bem trançados, suas propriedades únicas faziam com que passassem de um tecido leve a uma proteção contra o inverno mais rigoroso possível.

As hospedagens viviam cheias, assim como os bares, o teatro e todos os lugares de entretenimento da Capital.

Bem no meio da praça, apertada entre barracas de tecido e pedras preciosas, ficava uma pequena barraca de chá. A dona era Estrela Valente, uma mulher descendente da mistura de humanos e elementais da Terra, da vila de Valedoce, bem ao sul da Capital.

Estrela mudara-se para a Capital com suas três filhas; naqueles tempos ainda bem pequenas. Era uma mulher de estatura baixa como seu povo, mas de corpo forte. Sua pele tinha um tom de quem passara muito tempo ao sol. Seus longos cabelos eram de um castanho bem escuro, e os olhos amendoados entregavam toda a doçura da qual era feita. Seus chás, dizia-se, eram milagrosos.

Curavam até as dores da alma.

Aos olhos comuns Estrela não tinha poderes, pois nunca foi à Academia de Magia e Política. Para quem a conhecia, porém, era sabido que nenhum simples mortal fazia o que ela era capaz de fazer.

Um dia, movimentado como de costume, Estrela percebeu uma figura estranha e encapuzada que rondava sua barraca. Vez ou outra, ao longo do dia, sentia que estava sendo estranhamente observada por um ser, do qual tinha vislumbres. Isso a preocupava, mas com todos os afazeres do dia acabava esquecendo-se.

No fim da tarde, onde a luz do sol já abandonara a praça, as lâmpadas começaram a ser acesas. Os mercadores já voltavam aos seus navios ou estavam entrando nos bares da cidade, e apenas os donos das barracas arrumavam suas coisas para finalmente ir para casa. Alguns ainda andavam por ali tratando dos últimos negócios para o dia seguinte. Estrela seguia o voo de uma borboleta amarela que passava por sua barraca, quando colocou os olhos no ser parado a sua frente.

– Boa noite! – cumprimentou Estrela. – Posso ajudar?

A figura nada disse. Ficou parada de cabeça baixa encobrindo o rosto com o capuz.

– Oi! Posso ajudar? – tentou Estrela mais uma vez. A figura virou-se de repente como se fosse fugir dali, mas não deu um passo e parou novamente.

– Desculpe! – disse uma voz trêmula, fraca e juvenil, virando-se novamente para Estrela, sem mostrar o rosto. – Você… ainda tem… algum… chá…

Estrela quase não ouviu a última palavra, no entanto entendeu a frase.

– Tenho, sim! Venha, vamos nos sentar. – Como já não sentia medo daquela pessoa encapuzada que poderia até ser uma criança, Estrela convidou-a para mais perto.

– É que… é que… não é para mim e… bem… eu não posso… não posso pagar… – disse ela.

– Você pode me ajudar a guardar as coisas aqui e eu lhe dou o chá! O que acha? – tentou Estrela.

– Claro! – e olhos grandes e brilhantes apareceram por sob o capuz. Os olhos tinham um tom de azul tão claro como a água mais pura das nascentes do Velho Rio. Estrela pôde ver os ombros da criatura se endireitarem, mas contra a pouca luz ainda não podia enxergar o rosto da sua nova ajudante.

– Pode começar colocando essas xícaras dentro daquele baú maior ali, por favor – instruiu Estrela. -Você não quer tirar a capa? Está uma noite quente!

– Não! – disse rapidamente, virando de costas ao passar perto de Estrela; e entrou na barraca.

Em silêncio, começou a empacotar as xícaras. Enquanto isso, Estrela atiçou o fogo e colocou um bule sobre ele. A luz do fogo iluminou uma pequena parte do rosto daquela figura, e Estrela pôde ver apenas que era alguém da ilha do Norte; a pele deles era inconfundível. Descendentes dos elementais do fogo tinham a pele como a terra após um vulcão ter entrado em erupção, partes enegrecidas e linhas finas escarlates como rios de lava que desciam por seus corpos. Não andavam sem ser notados, mas sua beleza era predominante frente à estranheza. Até os povos do outro lado do mar ficavam encantados em conhecê-los. Mas não era por conta de sua pele que aquela criatura estava coberta; não ali na Capital onde todos eram bem-vindos. Todos os povos de Artemísia tinham representantes naquela cidade, e com o povo da ilha do Norte não era diferente. Algo mais fazia com que ela estivesse coberta quase escondida.

– Eu disse que lhe daria chá para levar, mas não quer tomar uma caneca? – convidou Estrela. – Estou preparando uma para mim também! Hoje foi um dia longo e cansativo. Esse chá é ótimo para recuperarmos um pouco das forças e termos ânimo para as tarefas da noite.

– Você não se importa mesmo? – perguntou a criatura.

– Me importaria menos ainda se me dissesse seu nome e para que irá usar o chá, assim posso lhe dar o mais indicado – disse Estrela entregando a caneca a ela.

– Meu nome é Talina, mas minha família me chama de Nana – disse a garota após uma primeira bebericada na caneca de chá.

– Muito prazer, Talina. Eu me chamo Estrela! – e apertaram as mãos. Talina tinha as dela encobertas por luvas, mas Estrela pôde sentir o calor daquela filha do fogo.

– O chá é para a minha irmãzinha. Ela está muito doente, e nada que fizeram adiantou. Ouvi falar de sua barraca e queria tentar. Não tenho dinheiro e pensei em roubá-la, mas ao longo do dia vi o quanto era generosa e considerei que talvez pudesse me ajudar – contou Talina de cabeça baixa.

– Oh, criança! Se tivesse me roubado, iria levar o que quisesse, pois não sou de brigas. Ainda bem que escolheu conversar, assim posso tentar ajudá-la de verdade. O que sua irmãzinha sente? – perguntou Estrela.

– Ela sente dor. Nossa mãe é uma descendente direta dos elementais do fogo e nosso pai é um elfo da floresta. Minha irmã e eu nascemos dessa mistura e o corpo dela não está aguentando os dois elementos. O ar faz o fogo queimar ainda mais intensamente. Se não conseguimos controlar,

nosso coração acaba se queimando com as labaredas que nos lambem as entranhas. Ela ainda não tem idade para ir à Academia, tem apenas quatro anos, mas seus poderes já se manifestaram de uma

forma forte e dolorosa – contou Talina.

Estrela soube, então, por qual motivo Talina estava encoberta. Provavelmente tinha traços do pai, talvez as orelhas ou os cabelos. E por mais que durante as eras as misturas entre descendentes de elementais tenham se tornado muito comuns, os descendentes dos elementais do fogo quase não se misturavam, a não ser entre eles mesmos. E esse amor entre uma filha do fogo e um filho do ar era potencialmente problemático para as tradicionais famílias da ilha do Norte.

– Entendo, criança! – disse Estrela pensativa. – Não sei o que posso fazer quanto a isso, mas leve esse aqui. É um chá de flores lilases que acalmam. Além de lhe dar de beber, banhe-a também com esse chá.

Estrela murmurou alguma coisa para a caixinha de chá antes de passá-la à Talina. Ela gostaria de poder fazer mais, porém não sabia bem como.

– Obrigada, senhora. Muito obrigada. Nunca poderei pagar-lhe o bem que faz a mim hoje! – disseTalina, ajoelhando-se na frente de Estrela e agarrando-lhe as mãos.

– Levante-se, criança. Não é nada demais, apenas algumas folhas de chá. E espero que realmente sejam de alguma serventia – disse Estrela.

Elas terminaram o chá em silêncio. Talina revezava entre terminar o chá e concluir sua tarefa. Assim que terminou, virou-se para Estrela.

– Preciso ir. Minha mãe já deve estar procurando por mim. Estamos na casa de uma prima no fim da rua do parque – contou Talina.

– Então, vá depressa. Não é bom deixar uma mãe preocupada – disse Estrela de uma forma bem maternal pegando outra caixinha. – Leve este para você, criança. É um presente, para os dias que estiver precisando de ânimo.

Talina pegou a caixinha, agradeceu mais uma vez, curvando-se, e saiu puxando a capa sobre o rosto. Estrela guardou as últimas coisas. O sol já acabara de se pôr e, para a época, a noite vinha estranhamente escura. Nuvens encobriam as estrelas, e as lâmpadas da praça pareciam mais fracas que o normal. As barracas em volta já haviam sido fechadas, e Estrela deu uma última olhada para certificar-se que guardara tudo. Um vento gelado soprou, fazendo-a arrepiar enquanto andava até a porta da casa que ficava próxima à barraca. Antes que conseguisse abrir a porta, estacou ao ouvir um grito vindo da rua por onde Talina havia descido.

Estrela correu na direção do grito e parou na entrada da rua que estava às escuras. As lâmpadas ali não haviam se acendido. A única fonte de luz era o rosto e os braços de Talina. Sua capa tinha sido arrancada e as linhas de fogo em sua pele iluminavam Talina e as quatro criaturas que a cercavam. Estrela nunca tinha visto seres como aqueles. As criaturas tinham cabeças de lobo com chifres de carneiro. Andavam sobre duas pernas fortes como as de cavalos, seus troncos eram magros a ponto de destacar as costelas e sua pelagem era de um verde-musgo com traços avermelhados. Os olhos expressavam perigo e maldade.

Uma dessas criaturas avançou sobre Talina. Ela sacou uma espada da cintura, desferiu um golpe na criatura, acertando-lhe bem no meio do peito, abrindo uma longa ferida que fez a criatura desistir do ataque direto. As outras três aproximavam-se devagar, e Estrela, congelada onde estava, precisou pensar em uma forma de distraí-las para que Talina conseguisse fugir.

Veio-lhe à mente uma prece antiga que sua avó havia ensinado a sua mãe. Em sua família as pessoas não tinham poderes, mas aprendiam algumas palavras de uma língua já há muito esquecida pelos descendentes dos elementais da Terra. Algumas dessas palavras ajudavam suas plantas a crescerem mais fortes. Isso não seria de serventia nenhuma agora, porém Estrela aprendera também uma palavra de proteção. Fechou os olhos, mentalizou o que queria e pensou na sua mãe. Aquela feliz lembrança dava força à palavra. Então, proferiu-a, e as quatro criaturas ficaram presas ao chão. Não se via nada que as pudesse deter, mas não conseguiram mais avançar. Tentavam dar mais um passo, porém suas pernas não se mexiam. Estrela sabia que o efeito não duraria muito e gritou:

– Venha, Talina! Corra!

A garota correu em direção à Estrela. Elas deram as mãos e foram ainda mais depressa. Estrela mostrava o caminho, até chegar com Talina de volta à praça. Contornou sua barraca e foi em direção a uma porta alta e estreita de um tom verde berrante. Entraram às pressas, e Estrela trancou a porta. Como previsto, o efeito não durara muito, e Estrela pôde ouvir os cascos das criaturas na praça aproximando-se de sua porta. Pareciam andar de um lado para o outro. Ela sabia que eles não poderiam ver a entrada. Uma velha amiga certa vez colocou um encantamento ali, onde ninguém que não tivesse boa intenção poderia transpor aquela porta verde berrante. Ouviu também altas vozes que vinham da rua de trás. A guarda da cidade devia ter notado alguma coisa estranha e aproximou-se da praça. Os cascos que Estrela ouvia foram se distanciando até sumirem, e ela apenas conseguiu ouvir a guarda passando ligeira pelo local.

– Pronto! Agora estamos salvas – ambas respiravam ofegantes e acalmaram-se antes de subirem a estreita escada do térreo para o primeiro andar da casa de Estrela.

Já no alto da escada as luzes do ambiente brilhavam fortes. Estrela foi recepcionada por três garotinhas – suas filhas – que vieram correndo abraçá-la. Elas não deviam ter mais que seis ou sete anos. Ao se desvencilharem da mãe, olharam para Talina e pararam boquiabertas, até que uma delas disse:

– Você é tão linda!

Talina sentiu o rosto esquentar, o que fazia seus traços brilharem com mais intensidade. Ela de fato tinha a pele dos descendentes do fogo, mas seus cabelos eram longos e prateados como raios de luar e suas orelhas pontudas como as do povo do ar. Agora que a garota estava sem a capa, Estrela podia ver-lhe as roupas e sabia que não era alguém humilde como ela e suas filhas. Talina vestia uma camisa com mangas curtas de um tecido fino e delicado, levemente transparente; por baixo, via-se um tecido preto que delineava o contorno de seu corpo jovem. Um cinto fino e dourado prendia ambos junto à calça acinturada de cor marrom, sobreposta por uma espécie de tecido xadrez. No pescoço, uma gola em formato de colar prendia-se com algumas gemas minúsculas de ônix. Usava botas de montaria e sua espada estava atada à cintura. Para Estrela não importava quem a garota poderia ser, mas sim que naquele momento precisava de ajuda e ela não negaria.

– Vamos deixar a Talina em paz, meninas. Podem continuar brincando que eu vou preparar o jantar – disse Estrela.

Estrela deixava as meninas em casa enquanto trabalhava, mas ia vê-las de hora em hora. Hoje, sua irmã estava tomando conta delas, então Estrela não se preocupou em conversar calmamente com Talina. Não sabia que demoraria, ainda mais por conta do incidente ocorrido, mas com as meninas seguras o mundo dela estava em ordem. Ela conversou rapidamente com a irmã quando esta veio

de outro cômodo. A moça, muito parecida com Estrela, cumprimentou Talina e saiu. A casa era bem pequena. Ali naquele mesmo cômodo ficavam a sala, a cozinha, também uma área de brincar das

meninas e prateleiras cheias de livros. O outro cômodo era o quarto das quatro com um banheiro. Uma escada em espiral ficava num canto e dava para um terraço.

Talina observou a humilde casa e sentiu-se acolhida ali. O medo, que acabara de passar, estava quase acalmado com o aconchego do lar que entrara. Neste momento pensou em sua família: se eles estariam em perigo. Também questionava: “O que eram aquelas criaturas? Por que estavam atrás dela?”. Eram perguntas ainda sem respostas. Ninguém sabia sobre seus poderes. Sua mãe não lhe permitira ir à Academia ainda, justamente para protegê-la. Algo estava errado e Talina precisava descobrir o que era. Aquele pensamento trouxe de volta o nervosismo e ela foi até Estrela.

– Muito obrigada por tudo que está fazendo por mim, mas tenho que ir até minha família. Preciso saber se eles estão bem.

– Acalme-se, criança! Minha irmã vai mandar uma mensagem para seus pais, e eles virão buscar você em breve – disse Estrela. – Agora faça com que aquelas três pestinhas lavem as mãos para jantar… E você também. Uma refeição quente e outra caneca de chá fortificarão o seu espírito, e as meninas irão gostar da companhia. Até que seus pais cheguem você ficará aqui em segurança.

Talina sorriu e foi ajudar as meninas a lavar as mãos.

O jantar correu alegre e divertido. As meninas encheram Talina com perguntas sobre as ilhas do Norte. Sua mãe as encorajava a serem exploradoras, conhecerem o mundo e fazerem amizades. E elas não perdiam tempo. Enquanto estavam tirando a mesa, ouviram batidas na porta. Estrela espiou pela fina sacada e viu uma suntuosa carruagem parada a sua porta.

– Seus pais estão aqui, querida – disse para Talina.

– Eu queria poder ficar mais! Vocês são muito agradáveis e eu me diverti de verdade aqui. O medo já tinha me abandonado, mas agora a ideia de sair me deixa tensa – disse Talina.

– Não fique assim! Estará protegida com seus pais e sua irmãzinha. Eles precisam de você. E não esqueça de dar o chá para ela – lembrou-lhe Estrela.

– Não esquecerei – Talina abraçou cada uma das meninas e, junto com Estrela, desceu as escadas.

Estrela abriu a porta com cautela, mas uma mulher esbaforida foi logo falando alto reivindicando a filha. Estrela não a julgou; ficaria da mesma forma se uma das suas sumisse.

A mãe de Talina acalmou-se de imediato assim que a filha apareceu à porta. Elas se abraçaram e a garota contou rapidamente o que acontecera, sem entrar em detalhes principalmente sobre a barracade chá. A mulher agradeceu Estrela longamente e presenteou-lhe com uma caixa. Talina voltou-se para Estrela antes de entrar na carruagem e a abraçou, agradecendo mais uma vez. Então, finalmente partiram.

Estrela voltou para junto das filhas. Abriram a caixa e dentro havia um colar de ônix, um par de brincos e algumas pulseiras. O valor era inestimável. Se fossem vendidos, Estrela e suas meninas não passariam aperto por anos; decidiu mantê-los consigo por ora. Depois daquele encontro, Estrela e Talina nunca mais se viram.