Em um dia de céu claro e sol forte, a jovem Georgiana perambulava pelos arredores da capital de Artemísia, querendo conhecer mais a região. Chegou a uma parte do rio em que se formava uma espécie de lago que continuava seguindo estrada abaixo em direção ao mar. A jovem se aproximou da beirada, mergulhou sua mão e sentiu o frescor da água tocando sua pele enquanto observava seu reflexo nas águas calmas.

Não resistiu… Tirou o vestido fino que usava, pendurou-o em uma árvore próxima, ficando apenas com as roupas íntimas. Numa terra de tantas criaturas diferentes, sentia-se ordinária demais. Ela era uma descendente dos seres humanos mais comuns. Sua pele era clara, seus olhos pequenos e pretos, seus cabelos também pretos cortados na altura dos ombros; tinha as pernas grossas e o quadril largo. Sempre sonhou em ter asas, mas nem mesmo seus recém-descobertos poderes puderam lhe dar o que tanto desejava. Afastou aqueles pensamentos quando uma borboleta amarela a rodeou e pousou em seu vestido. A garota observou-a por um momento e entrou nas águas escuras do rio.

Deu algumas braçadas até o centro do lago, onde virou de costas e se deixou boiar um pouco. O contraste entre o sol que aquecia seu rosto e a água resfriando suas costas a fazia relaxar. Fechou os olhos e deixou que a correnteza levasse embora todos os pensamentos ruins, até que sentiu algo roçar seu calcanhar.

Tomou um pequeno susto com isso e acabou engolindo um pouco de água, sendo obrigada a ficar na vertical para tossir, percebendo também que onde estava já não lhe dava pé. Assim que abriu a boca puxando o ar, algo se agarrou às suas pernas e puxou-a para baixo d’água. Ela começou a debater-se loucamente tentando escapar, mas não conseguia ver o que a tinha agarrado. Sentiu-se afogar e engolir ainda mais água.

Depois de quase um minuto a vista começou a escurecer. Sentia a morte chegando enquanto se afogava. E logo ela, que acabara de ganhar sua passagem para fora do convívio com a sua triste família; logo ela, que tinha agora a oportunidade de desenvolver seus poderes e trabalhar para o povo.

O desespero tomava conta de seu corpo, porém o movimento parou de repente e, estranhamente, a jovem sentiu a mente clarear, assim como a sensação de afogamento também se foi. Colocou-se de pé, no que devia ser o fundo do rio, e olhou em volta.

Achou que realmente havia morrido e que aquela era a entrada do paraíso. Atrás dela, no fundo daquele rio, erguia-se um palácio quase tão grande quanto o da superfície, mas este brilhava como o sol no fundo daquelas águas escuras. Ainda era um mistério para ela de onde vinha esse brilho. Ficou um tempo completamente parada, apenas olhando aquele lugar. Não podia acreditar nos seus olhos. Georgiana estava realmente respirando debaixo d’agua; mas, antes que pudesse pensar mais para entender esses mistérios e descobrir onde estava, gritou ao sentir mãos pegajosas segurarem os seus braços e erguerem seu corpo.

Duas criaturas a seguravam e a levavam para dentro daquele lugar. Tinham os braços e as pernas um pouco mais compridos do que os de um humano normal; também eram mais altos, pareciam alongados. Suas mãos e pés pareciam nadadeiras, e seguravam lanças com as mãos que não estavam segurando a garota. Os braços eram fortes e a pele de um deles era coberta de escamas, enquanto a do outro era coberta de algo que parecia couro. Em seus pescoços havia guelras e seus rostos possuíam olhos verdes e azuis redondos e enormes que miravam a entrada daquele lugar. Bocas finas e nenhum nariz compunham as expressões severas daquelas criaturas.

O cérebro de Georgiana funcionava a mil pensando em como escapar dali. Já ouvira sobre povos do fundo d’água, e as histórias que haviam contado para ela a respeito eram assustadoras. Contavam de mãos pegajosas e rostos encantadores que seduziam a vítima fazendo-a mergulhar por vontade própria nas águas do mar profundo, arrastavam-na para baixo e lá a vítima era morta e virava comida daquelas temíveis criaturas.

Georgiana se arrepiou com o pensamento e ficou ainda mais tensa sentindo o toque daquelas mãos.

– A senhorita está presa e será levada para julgamento – disse um deles, com uma voz forte.

– Mas eu não fiz nada, nem sei como vim parar aqui; estava apenas nadando no rio! – tentou explicar, mas eles não disseram mais nada. – Por favor, foi um mal-entendido, só me deixem sair e nunca mais me verão!

Mas eles continuaram em silêncio.

Subiram uma escadaria em direção aos portões. Dentro não havia apenas o palácio, mas toda uma cidade. Atravessaram um pátio movimentado. Outras criaturas como aquelas duas estavam ali, e Georgiana pensou ter visto dentro das tendas, junto àquelas criaturas, alguns como ela, e as lendas voltaram de imediato à sua mente: “Será que estavam sendo vendidos ali?”, pensou. Não conseguiu mais prestar muita atenção no caminho; precisava pensar em como sair daquela enrascada. Depois de atravessarem algumas ruas, chegaram, enfim, à entrada do palácio. Passaram por portas enormes e entraram em um salão de pé direito alto, com escadas em formato de caracol de ambos os lados, que não se via o fim. No salão também havia algumas mesas e em uma delas estavam sentadas três criaturas, uma de um lado da mesa e as outras duas do outro, como se estivessem sendo atendidas. Os guardas que carregavam Georgiana finalmente a puseram no chão, mas não a soltaram. Assim que as duas criaturas saíram, eles levaram a garota até a mesa.

– Pegamos essa suspeita nos portões de entrada – disse a criatura de pele com escamas. -Ela deve ser encaminhada ao Regente para julgamento.

– Certamente. O Senhor Regente está muito ocupado no momento, então podem colocá-la em uma das celas, e assim que possível mandarei chamá-la – disse a criatura sentada atrás da mesa. Ela tinha uma voz mais aguda que a das criaturas que carregavam a garota. Seu corpo, à primeira vista, era ligeiramente diferente, parecia ainda mais alta e forte.

– Não! – gritou a garota, tentando mais uma vez argumentar. – Não quero ir para cela nenhuma. Não fiz nada errado para que seja julgada, muito menos para que seja presa!

– Levem-na daqui – disse a criatura com ar superior, ignorando-a.
– Nãaaaaooooo! – gritou, contorcendo-se nos braços dos guardas. – Se forem me

matar,que seja de uma vez!

– O que está acontecendo aqui? – disse outro deles saindo por uma porta ao lado da mesa da secretária.

Georgiana agarrou-se àquele fio de esperança de que o próximo poderia libertá-la. E caso não conseguisse, que pelo menos pudesse matá-la ali mesmo.

– Querem me prender, senhor, e eu não fiz nada para merecer isso. Fui literalmente puxada pelo rio e vim parar aqui sem saber como sair! Esses guardas me acharam e querem me prender até que o Regente possa me julgar. Eu sou nova na Capital, vim da cidade de Valedoce há pouco tempo para estudar, e não quero ser morta ainda – dizia ela, desesperada – Por favor, não deixe que me matem e me comam!

O rapaz respirou fundo soltando os punhos que mantinha cerrados enquanto ouvia aquela estranha insultar seu povo.

– Quem disse que faremos isso com você? – ele perguntou com uma raiva fervente na voz. – Quem fizer isso, esse sim será preso e morto! Nós não fazemos essas coisas com ninguém. O povo do mar faz; mas nós somos civilizados e subordinados à rainha de Artemísia, assim como você. Se a senhorita fosse presa, provavelmente seria por pura precaução de meus guardas e para aguardar um julgamento justo. Ofende-nos tremendamente com tais palavras.

E então Georgiana percebeu seu erro de julgamento e o motivo daquela raiva na voz. Aquele povo parecia muito civilizado. Não seriam capazes de matá-la e comê-la. O rapaz devia ser o Regente e claramente estava tentando controlar a raiva, que sentira pelo insulto, para poder falar com ela e entender a situação. Georgiana ainda se sentia tensa, mas a mudança na voz do Regente ajudou-a a clarear a mente.

– Perdoe-me, senhor! – pediu, sentindo o rosto corar. – Não foi minha intenção ofendê-los. E não que seja justificável meu comportamento, mas esses senhores me pegaram desprevenida e me arrastaram até aqui contra a minha vontade. Por favor, ajude-me!

O Regente pensou por alguns segundos. Via que a garota estava realmente assustada
e que provavelmente nunca ouvira falar em Belagota, assim como tantos outros no interior do reino. Até as pessoas da capital esqueciam às vezes que eles estavam ali embaixo. Artemísia precisava melhorar e muito sua educação para o povo comum. Poucos conheciam todas as regências. E como eram notórias as más intenções dos forasteiros que ali chegavam, então o Regente decidiu deixar que ela se acalmasse e que se explicasse.

– Suas desculpas foram aceitas. Entre, por favor, e vamos esclarecer tudo isso – ele disse, apontando a porta por onde saíra.

Os guardas a soltaram e a garota entrou em uma sala, onde havia uma mesa, com a mesma distribuição de cadeiras da sala que ficava do lado de fora, e muitas prateleiras com objetos que ela não conhecia. Georgiana conseguiu respirar aliviada por um momento e sentou-se em uma cadeira depressa, assim que o regente indicou uma, pois precisava parar de tremer. Atrás da mesa havia uma espécie de janela, e Georgiana conseguiu ver um pouco mais da cidade que se formava em volta daquele lugar. Apesar do medo inicial, estava encantada. O lugar parecia uma pedra preciosa e cheia de vida.

Um jovem, parecido com os demais, que estava parado em um canto da sala segurando um vidro com um líquido escuro dentro, disse:

– Uma maravilha, não é mesmo? Senhores Peixes são bons construtores.

Georgiana o encarou, e ele colou o vidro no lugar. Era a criatura mais linda que ela jamais vira. Era mais baixo e bem menos forte que os guardas que a seguraram, mas tinha uma pele de couro que brilhava discretamente com os pontos de luz que refletiam do castelo, e as guelras em seu pescoço estavam contornadas com pequenos arabescos pintados no couro. Tinha olhos redondos enormes e verdes, de uma doçura que a acalmava um pouco. O senhor que iria conversar com ela tomou o seu lugar e, então, disse:

– Pode dizer novamente como veio parar aqui?

Georgiana demorou um segundo para se concentrar no que ele dizia. Ainda olhava o jovem que tinha o lábio superior muito fino e o inferior carnudo; seu sorriso era encantador e ela não conseguia parar de encará-lo.

– Sou Matiel, Regente de Belagota, a propósito, e este é meu filho Galael. E quem é a senhorita?

Ela conseguiu, forçosamente, desviar o olhar de Galael e encarar o Regente.

– Sou Georgiana, vim de Valedoce e irei estudar política e magia na Academia de Magia e Política de Artemísia – ela contou, tentando não olhar para Galael.

– Impressionante! Uma descendente direta dos humanos que domina as duas artes! – Matiel a elogiou, estudando-a com o olhar. Ela corou novamente e, então, continuou:

– Estava conhecendo a região, fugindo um pouco do tumulto da capital ao qual não estou acostumada, e acabei encontrando o rio. A água estava tão gostosa e o sol tão forte que decidi entrar um pouco e algo me puxou aqui para baixo – explicou, lembrando-se agora que estava apenas de roupas íntimas na frente daqueles Senhores Peixes. Sentiu que parecia uma criatura ainda mais sem graça naquele momento, e ficou ainda mais vermelha pela falta das roupas.

– Será que podem me arrumar algo para vestir?

– Vocês humanos e sua obsessão por estarem vestidos! – ele disse, tocando uma sineta. Uma Senhora Peixe apareceu e ele lhe falou rapidamente. A senhora saiu e voltou com uma espécie de robe de um tecido delicado que Georgiana nunca tinha visto; o toque era gracioso, como se um fio d’agua cobrisse sua pele. Ela agradeceu à senhora e vestiu- se.

– Galael também irá para a escola estudar política – contou Matiel à garota. O jovem parecia tão encabulado quanto Georgiana. E o Regente continuou:

– Estamos investigando quem vem puxando as pessoas aqui para baixo. Não é algo comum alguém aparecer aqui contra a própria vontade, mas ainda não descobrimos quem está por trás disso. Eu acredito que a senhorita tenha vindo parar aqui sem querer, por isso está perdoada. Espero que entenda a atitude dos nossos guardas. Tentamos viver em paz, e pessoas mal-intencionadas podem causar muita desordem por aqui. Eu tenho muito o que fazer agora, mas por que você não fica para jantar conosco? Galael pode fazer-lhe companhia até lá! – ofereceu o Regente.

Georgiana pensou que realmente não tinha muito o que fazer na superfície, por isso aceitar o convite, além de provar que ela também os julgou errado, seria fonte de conhecimento para ela que vira tão pouco do mundo ainda. As aulas só começariam na próxima lua e ninguém sentiria a sua falta, então decidiu aceitar.

– Tudo bem, mas poderei ir para casa a hora que decidir? – perguntou a garota só por precaução.

– Certamente. Galael também pode mostrar-lhe como sair – ele disse, fazendo um sinal para o filho, e este foi até Georgiana e estendeu-lhe a mão.

– Então vamos logo? – perguntou o rapaz.

A garota corou fortemente. O olhar de Galael tinha mudado ligeiramente, e ela segurou a mão estendida do garoto, passando, em seguida, seu braço pelo dele. O toque era frio, porém reconfortante. Eles deixaram a sala por outra porta que dava direto aos jardins de corais do castelo, atravessaram o jardim e saíram numa rua movimentada.

-Finalmente! Não aguentava mais! – disse o garoto, soltando Georgiana. – Você parece uma menina muito boazinha, talvez queira ficar sentada aqui me esperando. Eu tenho coisas importantes e perigosas para fazer.

Georgiana ficou chocada com a mudança de comportamento do rapaz e sentiu-se um tanto curiosa sobre essas coisas perigosas. Ao contrário do que ele pensou, ela também gostava de uma boa aventura e nunca tinha vivido uma debaixo d’água.

– Você não vai me deixar aqui de jeito nenhum! – e voltou a segurar com força a mão de Galael.

– Tudo bem! Mas eu não me responsabilizo pelo que acontecer com você! – disse ele, sorrindo pela ousadia dela. – Precisamos pegar algo que me foi tirado – ele contou de forma misteriosa, puxando-a pela rua. Andaram bastante até se afastarem da cidade. Galael parecia estar levando a garota para o meio do nada. Chegaram, enfim, a um corredor estreito de pedras – Está ali dentro! – ele apontou para uma casa de pedras no fim do beco.

– Ok! Então, vamos lá, não vejo nada de perigoso nisso! – ela disse cedo demais, e o garoto ficou surpreso com a ousadia de Georgiana, mas também um pouco animado.

– Vamos fazer o seguinte: já que você está aqui, então vai ajudar. Vou subir no telhado e você vai bater na porta para distrair o senhor daquela casa enquanto desço por um furo na telha e pego o que é meu. Não o deixe sair da porta.

Georgiana começou a preocupar-se. Isso parecia mais um roubo. Como aquele garoto tinha sido selecionado para política sendo que furtava coisas das casas dos outros? E o pior, se fossem pegos, ambos seriam expulsos da escola. Seria expulsa antes de sequer começar. Ela poderia desistir, mas não queria parecer covarde.

– Tudo bem! – acabou por dizer. E viu Galael, com muita destreza, subir no telhado da casa.

Ela se encaminhou para a porta e bateu. Não fazia ideia do que iria dizer. Teve que bater uma segunda vez, e aguardou mais um pouco. Ouviu algum movimento lá dentro e a porta se abriu de uma vez só. Georgiana segurou um grito na garganta e arregalou os olhos dando alguns passos para trás ao ver o que tinha aberto a porta. Uma criatura enorme, como um polvo gigante, cheio de tentáculos e olhos, diversas bocas que rodeavam o que devia ser sua cabeça. Georgiana começou a tremer e tentou se controlar para não ofender a criatura. Isso poderia ser muito pior do que a ofensa que já tinha cometido contra o Regente. A criatura abriu todas as bocas e a garota teve que tapar os ouvidos.

– O que queres, humana? – disse a criatura em uma cacofonia de sons saídos de todas aquelas bocas. Georgiana sentia seu cérebro vazio, não conseguia pensar em nada para dizer. Sobre o telhado, Galael ria da garota e passava pelo buraco que havia ali.

– Ah… eu quero… eu estou…
– Fale logo, a não ser que queira perder essa sua cabecinha oca.

E Georgiana ficava cada vez mais assustada. Era a segunda vez em uma tarde que achava que seria morta.

– O senhor poderia… poderia… me dizer como faço para voltar à superfície? – ela disse, aliviada por conseguir pensar em algo. Galael, que acabara de pôr os pés na sala do polvo gigante, contraiu-se ao ouvir o que a garota tinha dito. Ela poderia perguntar qualquer coisa e foi logo dizer o que não deveria. Ele esquecera de avisá-la que o Senhor Rondor “pegava para si” afogados sem supervisão. Era um boato, ninguém nunca conseguiu provar, mas diziam que era como ele se alimentava.

– Ah… uma afogada perdida! – disse Rondor – Claro que posso ajudá-la! – levou um dos tentáculos ao rosto da garota. – Tão macia! – disse ele apenas com uma das bocas, o que fez com que Georgiana quase não ouvisse.

Galael viu o que queria pegar ali, um objeto como uma pérola que brilhava como um sol laranja. Foi em direção à esfera, mas estacou ao ouvir Georgiana gritar. Rondor pegara agarota com um dos tentáculos e a tirara do chão, trazendo-a lentamente para dentro.

Galael pensou por um segundo se ajudaria Georgiana ou se pegaria o que precisava e daria o fora dali. E nesse um segundo pensou em deixá-la, mas sabia que não poderia. Então subiu correndo por onde descera e chegou ao telhado ouvindo a porta de Rondor ser fechada com a mesma violência com que fora aberta. Desceu e bateu na porta desesperadamente. Seu pai o mataria se soubesse que perdera a garota para Rondor e, pior ainda, se soubesse que a mandara para a morte. A porta foi novamente aberta e ele não esperou Rondor dizer nada e foi entrando, empurrando os tentáculos que estavam no seu caminho.

– Olá, senhor Rondor? Como vai a sua tarde? Por acaso viu uma garota humana rondando por aqui? – ele não conseguia ver Georgiana.

– Garota humana? – disse Rondor fazendo-se de desentendido – Ah, não que eu esteja me lembrando, faz muitos séculos que não vejo um deles/vamos comê- la… – as bocas disseram ambas as frases ao mesmo tempo.

– Senhor Rondor, preciso que me entregue a garota. Ela está sob proteção do meu pai, e o senhor sabe que se comê-la ficará encrencado – tentou argumentar Galael.

– Não vi ninguém com essa descrição, rapazinho. Caso veja, eu a mandarei para você – ele disse. Galael se desesperou, não conseguia ver Georgiana, e aquele senhor continuava mentindo.

– Sei que está com ela! Onde ela está? – e Rondor desenrolou alguns tentáculos que escondiam Georgiana. Ela parecia desacordada. – Pode, por favor, entregá-la a mim? Ela está sob proteção da regência, sei que o senhor não quer arrumar encrenca e acabar preso! – tentou argumentar.

– Criança tola, ela já está presa em meus tentáculos, portanto é minha! – disseram as bocas.

Rondor agarrou Galael e o jogou porta afora, fechando-a em seguida. O garoto entrou em desespero. Não queria deixá-la morrer; culparia-se por toda a eternidade. A sensação de perdê-la fazia seu estômago revirar. Não estava entendendo muito bem, nunca fora muito fã descendentes de humanos e achava que não se importaria com nenhum deles; mas Georgiana tinha algo de especial para ele.

A mistura de sentimentos que transpassava Galael despertou algo nele, e uma fúria tomou conta do seu corpo ainda de garoto. Os sentimentos se transformaram em algo físico como cordas de luz que seus punhos cerrados seguravam. Ele fez um movimento instintivo com uma dessas cordas e arrancou a porta da casa de Rondor das dobradiças.

– Rondor, eu não pedirei uma segunda vez! – falou ele com uma voz de trovão que não era sua.

No mesmo instante o polvo gigante jogou Georgiana em um canto da sala. A garota bateu com as costas no móvel e a esfera laranja rolou por entre suas pernas. Galael fez outro movimento com a corda, agora do lado esquerdo, e atingiu Rondor em um dos tentáculos. A criatura guinchou de dor e foi para cima de Galael. Uma luta começou naquele corredor de pedra. Rondor tentava atacar Galael e defendia-se com os tentáculos, e o rapaz tentava atacar Rondor com as cordas de luz que brotavam de suas mãos, usando-as também para defender-se. Ele era mais rápido que o polvo e conseguia desviar-se da maioria dos golpes, porém um dos tentáculos o atingiu de surpresa, jogando-o contra uma das paredes do beco, fazendo-o cair sangrando. Conseguiu levantar-se a tempo de não levar outra chibatada.

Georgiana foi recobrando a consciência e, ao abrir os olhos, viu a porta da frente escancarada e um polvo gigante que se movimentava no pátio lá fora contra algo que brilhava. Precisou de alguns segundos para entender onde estava, e então lembrou-se do terror de ser sufocada por aqueles tentáculos. Levantou-se num pulo, tropeçando na pérola laranja entre suas pernas. Ao tocá-la, Georgiana sentiu o ar mudar como na primeira vez que acessara seus poderes. Sentiu que algo explodia dentro dela. Saiu porta afora a tempo de ver Galael tomar mais uma lapada de Rondor. Sem saber exatamente o que estava fazendo, foi de encontro ao polvo com as mãos estendidas para ele desviando-se dos tentáculos que chicoteavam por todo lado. Ouviu, então, Galael gritar:

– Georgiana, nãaaaaaooooo!

Nesse momento de distração de Rondor, Georgiana agarrou-se ao polvo com as duas mãos, e ele caiu como morto no chão. A garota tinha suspendido a consciência da criatura que agora dormia jogada naquele pátio. Georgiana caiu de joelhos e chorou descontroladamente. Ainda não sabia controlar seus poderes. O que tinha acabado de acontecer não passara de instinto. Galael não podia ler os pensamentos dela, mas passava pela mesma coisa: sabia que tinha algum poder, porém não contara nada a ninguém porque não fazia ideia de como acessá-lo. E agora aquelas cordas de luz manifestadas o deixaram apavorado e ao mesmo tempo agradecido. Ele foi até Georgiana e a abraçou.

– Me perdoe! – ele sussurrou. – Não sabia que nos meteríamos em uma enrascada tão grande.

A garota o abraçou de volta. Seu toque continuava reconfortante e ela não sabia o porquê, porém não conseguia ter raiva de Galael, mesmo quase tendo sido morta e devorada. Ela não conseguiu dizer que o perdoava, mas ele entendeu que sim pelo abraço da garota.

– Vamos voltar para o castelo. Você precisa descansar, comer e voltar para a superfície. Por favor, não diga nada ao meu pai! – eles se levantaram e, olhando para dentro da casa de Rondor, viram a esfera laranja brilhar e sumir.

– Era aquilo que você queria? – perguntou Georgiana.

– Era, sim – disse ele, suspirando. – Há dias venho tentando pegá-la; aquela esfera nos coloca em contato com nossos poderes – ele explicou, dando a mão para Georgiana eguiando-a para fora do beco.

– Eu a toquei! Foi assim que consegui colocar Rondor para dormir – eles se entreolharam e não disseram mais nada até chegarem ao castelo. Galael levou Georgiana para um quarto, preparou um chá para eles e trouxe um robe limpo. Sentou-se no chão para limpar as feridas de ambos com uma caneca.

– Pode se trocar! – disse o garoto sorrindo. A garota o olhou corada.

– Preciso que me dê licença para isso! – explicou ela, e ele riu.
– Estou sem roupas aqui, garotinha. Você só tirará um robe e se enfiará em outro.Ela olhou para ele expressivamente.

– Tudo bem, vou me virar – disse ele, e ficou de costas para que ela trocasse a roupa. Georgiana trocou os robes, pegou uma caneca de chá e sentou-se na frente de Galael.

– Já pode se virar! 

– Até que enfim!

Os dois ficaram ali tomando chá e contando o que esperavam aprender na escola. O chá acabou rapidamente, mas a conversa não. Descobriram que a companhia um do outro era verdadeiramente boa. Ambos eram pessoas de poucos amigos, e saber que conheceriam alguém quando chegassem na academia era aliviador. Georgiana jantou com Galael e seu pai. Depois ele foi levá-la à superfície. Subir era tão ruim quanto descer. Equando finalmente emergiu no lago, a noite estava avançada e uma lua cheia iluminava todo o local.

– Obrigado por me salvar hoje! E por despertar os meus poderes! – ele disse segurando suas mãos na beira do lago.

– Obrigada a você também por me salvar. Nos vemos em breve, Senhor Peixe encrenqueiro. Espero que não me meta em mais nenhuma dessas confusões durante a escola! – ela disse sorrindo, e beijou-lhe a bochecha, levantando-se e caminhando de volta à estrada para a Capital. Pegou o vestido e virou-se para acenar. Galael ficou momentaneamente congelado com aquele ato, mas se recompôs a tempo de gritar:

– Não posso prometer, humana! – e mergulhou de volta às profundezas do rio, rumo a Belagota.