A guarda real de Artemísia era treinada ao extremo. Os limites dos guardas eram testados em diversas habilidades, em todo o tipo de terreno ou situação e para enfrentar qualquer perigo.
As pessoas podiam alistar-se a partir dos 15 anos, mas só realmente exerciam suas funções quando completavam 19, após uma prova de sobrevivência que ninguém fora da guarda era capaz de saber onde ou como era executada.
Diana e Caetano fariam suas provas naquele dia. Eles tinham se alistado juntos e eram amigos de infância. Sempre sonharam em servir no mesmo período nas ilhas do farol. E no mesmo dia, após a prova, saberiam para onde seriam mandados.
– Estou nervoso. Sei que treinamos bem, mas não sei o que esperar de hoje – disse Caetano enquanto entravam na carruagem da guarda que os levaria até o local da prova junto com mais um rapaz que também faria o teste.
– E você acha que estou tranquila? Já não basta tudo que tivemos de fazer durante esses cinco anos de treinamento, ainda temos que passar por uma prova de vida ou morte? – disse Diana. Suas palavras finalizaram a conversa e ambos ficaram pensativos durante todo o caminho.
A carruagem que saíra da capital foi em direção ao porto e parou bem na entrada do cais. Todos foram instruídos a descer e, em seguida, encaminhados para a beira da água.
– Bom, dia senhores! – disse o comandante responsável pelos treinamentos.
– Bom dia, senhor! – responderam os três em uníssono.
O Comandante passou, olhando minuciosamente um por um. Diana apresentava um físico invejável. Era alta e tinha braços fortes. Seus cabelos pretos encaracolados lhe davam um ar de rebelde, mas estavam perfeitamente presos em duas tranças que se uniam em um coque em cima da cabeça, deixando à mostra as laterais raspadas e os símbolos de proteção ali pintados. Seus olhos castanhos-claros eram a pura jovialidade. Diferente de Diana, Caetano não tinha a mínima aparência de um soldado. Era magro demais e de estatura mediana. Tinha grandes olhos verdes. Seus cabelos estavam cortados muito rentes à cabeça, e em uma das suas orelhas havia um furo largo, no qual usava um adorno, que teve de tirar por conta da sua formação. O uniforme de ambos estava impecável. Foram lavados e passados por Ângela, mãe de Caetano. Ela deixara os botões brilhando. As medalhas adquiridas ao longo da formação também estavam reluzentes. O comandante olhou com desdém para os dois e continuou sua inspeção silenciosa até chegar ao último. Um jovem elfo foi dispensado ali mesmo, pois seu uniforme estava em desalinho – para alguém da guarda, um detalhe assim poderia ser apenas o início de algum descuido mais sério.
– Hoje vocês deixarão de ser crianças e se tornarão verdadeiros adultos. A maturidade será forçada para dentro de suas almas. Ao nascer do sol, se ainda estiverem vivos, suas vidas serão transformadas e vocês farão parte da melhor e mais respeitada guarda real de todo o continente. Artemísia precisa dos melhores em sua defesa. Não espero menos de vocês. Agora vamos ao que interessa… A prova é bem simples: vocês precisam apenas chegar à catedral de pedra.
Diana sorriu para Caetano. Eles já haviam percorrido aquelas estradas centenas de vezes. Ela não acreditava que era algo tão fácil.
– Por que a senhorita está sorrindo, aspirante?
– Nada, senhor! – respondeu Diana, ficando em sentido.
– Espero mesmo! Porque se vocês acham que irão pela estrada, estão muito enganados! Bebam isso, soldados, e coloquem as mochilas no chão – disse o comandante, apontando para duas cumbucas nas mãos dos guardas que o acompanhavam.
Diana e Caetano deixaram as mochilas e tomaram em uma única golada o líquido vermelho que havia dentro. O gosto era amargo e o efeito quase instantâneo. A cabeça de ambos começou a rodar… e um minuto depois estavam desmaiados. Os soldados os agarraram e os jogaram em um barco que atravessou a Baía dos Desejos – nome dado em tempos remotos pelo povo que desejava ter um lugar tranquilo para viver. Chegando ao outro lado, lançaram os dois na areia da praia e os largaram lá.
O efeito do remédio não demorou a passar e Diana foi recobrando os sentidos. Levantou-se vagarosamente. Ainda sentia a cabeça pesada, e seus olhos lacrimejavam com a luz poente que batia direto na praia. Olhou em volta e não viu ninguém. Pensou no que poderia ter acontecido com Caetano: ou ele fora jogado em outra parte da praia ou já havia entrado na floresta. Diana, contudo, duvidava que o amigo teria entrando na mata sem ela. Levantou-se assim que sentiu as pernas um pouco mais estáveis. Tinha até o amanhecer para alcançar a catedral de pedra, senão seu sonho de fazer parte da guarda real estaria perdido. Sem sinal do amigo, decidiu caminhar um pouco pela praia. Quando não conseguisse mais andar, entraria na floresta. Caminhou apenas alguns passos, mas logo sentiu gotas atingirem seu rosto. Uma chuva torrencial acompanhada de relâmpagos a alcançou e Diana teve de entrar floresta adentro para se proteger minimamente.
As árvores muito altas davam proteção contra os raios e faziam com que ela sentisse a chuva com menos força. Porém, dentro da mata e com a escuridão que a chuva antecipou, Diana já não via mais se estava indo na direção certa. Ela sabia que continuar andando sem rumo seria um completo desperdício de tempo. Diante disso, deixou-se descansar por uns minutos encostada em uma árvore.
Apoiou a cabeça na árvore e fechou os olhos. Ela tinha recebido treinamento; o desespero não podia fazer parte do seu vocabulário. Obrigou-se a lembrar dos mapas de Artemísia que estudara. Já que foi deixada do outro lado da Baía dos Desejos, na entrada da velha floresta, então para chegar à catedral ela deveria ir para o sul. Por causa da chuva, não tinha como saber bem para onde ficava o sul, no entanto ela conhecia outras formas de descobrir. Deitou-se com o ouvido colado na terra. Era descendente de uma família já tão misturada que não se via mais em seus traços a quem pertencia. Mas no seu coração sentia sua ligação com a água, e pelas nascentes que ouvia no fundo da terra ela sabia para onde devia seguir.
Levantou-se e se pôs a andar para dentro da floresta na direção que escolhera. O clima ali estava ainda mais gélido. Um vento cortante perpassava as árvores e as atingia com força.
Ao longe, Diana ouviu um barulho, a princípio baixo como um assobio. O som aumentava à medida que andava, até ela reconhecê-los como gritos. Não parecia a voz de Caetano, mas a incerteza a fez ir naquela direção. Se fosse o amigo gritando e ela não o ajudasse, certamente se sentiria culpada para sempre. Caetano era alguém especial para Diana. Os dois sempre estiveram juntos desde que se entendiam por gente. Brincavam de lutas e de como defenderiam o reino um dia. Também sonhavam juntos em estar ali. Só esse sumiço já lhe causava desconforto. Diana acreditava que o comandante os tivesse deixado em partes diferentes para que não se ajudassem. Caetano, no entanto, poderia ter chegado ali e ela não iria deixar de conferir.
Parou atrás de um arbusto, ainda sem conseguir saber quem gritava. Abaixou-se entre as folhas para olhar. Não era Caetano… Uma figura estranha estava presa em algo que parecia uma teia de aranha feita de galhos queimados no chão. Diana tentou entender o que estava vendo e podia dizer, com certeza, que a pessoa presa ali não era um simples humano. Os galhos se enrolando cada vez mais naquele ser dificultavam a identificação. Então, sem parar para pensar nem mais um minuto, Diana sacou uma faca que tinha dentro da bota. Achou estranho que os guardas não a tivessem tomado dela, mas esperava realmente que ninguém soubesse que guardava uma pequena arma ali. Ela era bem treinada e sabia que podia ficar sem sua espada. Com aquele punhal, ela correu de encontro ao emaranhado de galhos que agarravam a criatura e agora chegavam ao pescoço, sufocando-a.
Ao sentirem a presença de Diana, os galhos foram em sua direção, mas ela conseguiu escapar. Aproximou-se da criatura, jogando-se ao chão, próximo à cabeça dela, e cortando o galho que ali se prendia. Assim, desviando-se dos que tentavam pegá-la, Diana conseguiu soltar a criatura que, sentindo que estava livre, levantou-se de um salto, agarrou a mão de Diana e correu.
Elas pararam tão logo se puseram longe daquele local. A chuva havia parado. Diana pôde olhar para a estranha pela primeira vez e maravilhou-se com a visão. Era uma fada… não um descendente, mas sim uma fada. Uma elemental do ar estava ali bem a sua frente.
A primeira coisa que Diana notou foram as asas belas e enormes nas costas daquele ser. Eram asas brilhantes e com uma transparência em tons de roxo do mais claro ao mais escuro. Tinha longos cabelos verdes, cheios como um arbusto, e sua pele apresentava um tom de amarelo-pálido. As orelhas eram curvadas e pontudas. A fada virou-se para Diana, que se admirou ainda mais. Os olhos eram do mesmo tom das asas e em sua cabeça havia um diadema com uma pedra branca. Usava um vestido
longo, trabalhado por hábeis mãos. Dava para notar o trançado do vestido feito com algum tipo de folha desconhecida por Diana. Sua roupa possuía tons de verde muito claro misturado com branco, e uma faixa grossa como um cipó marcava a cintura. Tudo parecia ornar muito bem com o ser que a vestia. Seus pés descalços eram delicados e suas mãos tinham grandes unhas coloridas. Diana foi tirada de sua admiração ao ouvir uma voz clara e severa que lhe falava.
– Obrigada por me salvar, criança! – disse a fada.
– Eu não sou criança! – contestou Diana.
– Tens quantas eras sobre essa terra? Imagino que nem uma, apenas alguns efêmeros anos. Então, sim, és uma criança para nós – explicou. – Mas não te aborreças, tua ajuda será muito bem recompensada. A floresta está muito estranha por esses tempos. A última vez que a floresta atacou uma fada foi há muitas eras, quando o mal tomou conta de suas raízes e elas já não nos reconheciam mais. Porém, afugentamos aquele mal que agora parece estar de volta – a fada falava rápido e Diana não entendia muita coisa. – À propósito, me chamo Maresa. Estava fazendo minha ronda por esses lados quando os galhos começaram a me prender. Ainda bem que ouviste meus gritos, poderia ter sido tarde até que uma das minhas irmãs chegasse para me ajudar.
– Sou Diana. Estou numa prova para a Guarda Real e preciso chegar à Catedral de Pedra. Espero não topar com galhos como os que a agarraram, mas preciso ir agora. Meu tempo está passando e só tenho até o amanhecer para chegar lá.
– Sabes que para ti a Catedral fica uns cinco dias de caminhada pelo menos, não é querida? – contou Maresa.
– Não é possível! Eles não nos deixariam tão longe assim – analisou Diana. – Tem alguma coisa errada nessa história.
– Criança, tu não és a primeira que vejo tentar atravessar essa floresta, mas és realmente a primeira que me vê e me salva quando preciso de ajuda. Agora, como disse, serás bem recompensada por isso. Posso levar-te um tanto mais perto do teu objetivo, se assim desejares.
– Mas isso não seria trapacear? – disse Diana.
– Na verdade, seria usar os recursos que a floresta te oferece. Existe um riacho adiante que passa próximo à catedral. Eu posso levar-te até ele e de lá a correnteza te levará para teu destino final. O que achas?
Diana se sentiu animada pela primeira vez desde que acordou. Era uma ótima ideia.
– Tudo bem, vou aceitar a sua ajuda! – disse Diana.
– Então vem logo! Antes da próxima ronda, preciso voar para longe desta área e ir avisar sobre o que acabou de me acontecer – disse Maresa, e passou o braço desconfortavelmente em Diana, alçando voo.
Subiram além das copas das árvores e Diana pôde ver onde estava: ainda bem perto da praia onde acordara, muito distante da Catedral e do outro lado da Baía onde vira Caetano pela última vez. Seu amigo não lhe saía da cabeça. Será que ele tivera a mesma sorte que a dela ou fora mais esperto e procurara logo o rio? Diana sabia que ele conseguiria chegar a tempo. Aproveitou, então, para desfrutar a sensação de voar. Era algo realmente mágico, muito mais mágico que qualquer coisa que pudesse aparecer do nada em sua frente. Sentia o vento em seu rosto. As nuvens ainda carregadas de chuva pairavam pouco acima dela, e Diana sabia que se levantasse o braço poderia tocá-las. Não fez isso, mas a vontade permaneceu com ela muitos anos depois daquele evento. Ver o reino daquela altura era belíssimo e ela não conseguia descrever a emoção que sentia. Maresa desceu depois do que pareceu ao menos uma hora de voo, e Diana pôde ver o riacho à medida que se aproximavam do chão. Maresa pousou na descida de um pequeno morro onde o riacho jazia no sopé.
– Muito obrigada! – começou Diana.
– Não foi nada! Eu devo a minha vida a ti e isso ainda foi pouco. Não posso levar-te até a Catedral, mas o rio te levará em segurança. Agora tenho mais um presente antes que te vás! – disse a fada, puxando do chão um galho comprido que ao seu toque transformou-se em uma espada.
Diana, que achava que não se impressionaria com mais nada, ficou boquiaberta com a beleza daquela espada.
-Esta é Dunamis: uma espada das fadas para tua jornada. Espero que te acompanhe por longo tempo! – disse Maresa.
Diana pegou a espada, ainda sem acreditar e sem palavras para agradecer. Fez uma profunda mesura, e Maresa deu-lhe um sorriso bondoso.
– Agora vai direto para o riacho e só para quando ouvires o som da cascata. Em seguida, sai do riacho e segue para o sul, que tu chegarás à catedral.
– Não sei como agradecê-la! Que sua bondade seja conhecida por toda Artemísia, senhora! – disse Diana. Maresa puxou-a para um abraço e, soltando-a, alçou voo mais uma vez e sumiu na noite, deixando Diana perplexa e feliz.
Diana desceu o declive sorrindo e ainda olhando para a espada… Mas um barulho a fez parar. Não era possível que não conseguiria chegar ao riacho. Por precaução, escondeu-se atrás de uma árvore e esperou. Pensou que poderia ser Caetano – isso sim a faria feliz -, mas o som foi se aproximando, e logo ela pôde saber que se tratava de vozes. Não eram vozes comuns: falavam em uma língua tão antiga quanto a terra, e seu timbre era como música aos ouvidos de Diana.
Quando as vozes se fizeram completamente nítidas, espiou por trás das árvores e ficou paralisada onde estava. Não eram pessoas ou fadas; Diana acabara de topar com espíritos da floresta. Sua avó contava histórias sobre esses seres, mas ela nunca havia acreditado até então.
Os espíritos não a notaram ali. Para eles, ela era apenas mais um serzinho da floresta, que respirava ofegante. Mas um passo estalado em folhas mortas fez com que os seres a encarassem. E naquele breve segundo, escrutinando sua alma, eles viram que não era um ser qualquer. Espíritos da floresta gostavam de brincar com os seres viventes, e Diana agora sentia que estava realmente em sérios problemas. Segundo as lendas, as brincadeiras deles poderiam ir de algo simples até alucinações que fariam qualquer um definhar na floresta, sonhando que estava tomando chá com a rainha das fadas.
– Olá, pequeno ser! – disse um deles. Suas aparências eram peculiares. O primeiro a falar era feito de ar e folhas. As folhas lhe davam o formato de um rapaz vestido com um camisa despojada e calças curtas. Um longo manto se estendia sobre si. Tinha feições delicadas e sua voz era bela. Uma coroa de flores estava posta sob sua cabeça. Ele segurava um cajado de madeira escura e sorria para Diana de forma bondosa. O segundo ser era muito alto, parecia a fumaça que saía das chaminés. A fumaça lhe concedia, em tons de cinza, um vestido, um manto e um comprido chapéu pontudo. Seus olhos eram buracos fundos e as suas mãos em formato esquelético eram cheias de anéis de pedras de todos os tipos. A voz de Diana havia sumido. Ela não conseguia responder e nem gritar. Sua mão estava no cabo de Dunamis completamente por instinto. Algo em seu coração a alertava que deveria sair logo dali; todo seu corpo estava arrepiado e sentia as mãos começarem a tremer.
– Acho que ela não fala, meu caro Fyllo – disse o espírito de fumaça, com uma voz de trovão vinda do alto.
– Que pena! O outro era tão falante! – disse o espírito vestido de folhas. As palavras do espírito bateram em Diana como um tapa. Será que falavam de Caetano? Será que o tinham visto? O que podem ter feito com ele? Ela rezava para que não tivesse acontecido nada de ruim ao seu amigo.
– Vocês viram um rapaz com roupas parecidas com as minhas? – perguntou Diana, recuperando a voz.
– O que ganharemos se te dissermos o que vimos? – disse o espírito de fumaça, ajoelhando-se e apontando um longo dedo na direção de Diana.
– Essa mocinha não tem nada que eu queira, preciosa Nébula! – disse Fyllo, brincando com uma borboleta que passava.
– Mais um pouco não me faria mal… Ela parece tão valente quanto o outro. Talvez até mais… – disse Nébula.
Diana não entendia aquela estranha conversa e não sabia o que fazer a seguir: esperar calada eles decidirem como acabar com a vida dela ou interrompê-los e dizer alguma besteira que só aceleraria esse processo.
– Tudo bem… Nós temos uma proposta, pequeno ser – disse Fyllo. – Vamos fazer uma charada. Se acertares, poderás continuar teu caminho em paz, com um presente dos Espíritos da Floresta.
– Se falhares, tua alma será nossa e tu viverás por aqui para nos servir! – disse Nébula.
Diana não poderia estar com mais medo. Uma charada… e toda sua vida estaria em jogo? Que tipo de prova era aquela? A guarda real de Artemísia a havia deixado no lugar certo para a prova? Por que Caetano não estava ali? Ele saberia como sair dessa enrascada? Suas perguntas não tinham tempo de serem respondidas. Os espíritos estavam ficando impacientes e Diana só tinha uma opção. Ela sabia que não era boa com charadas e que se aceitasse sua vida encontraria o fim bem antes do que ela gostaria. Então, num último ato de loucura, desceu a encosta correndo feito louca e mergulhou nas águas do riacho. Ouviu as criaturas rindo enquanto a correnteza a arrastava para longe. Eles eram espíritos poderosos e poderiam vir atrás dela, no entanto ela lutaria o quanto conseguisse.
As águas a carregaram sem que nada mais de estranho acontecesse. Finalmente o riacho chegara no ponto onde a fada havia dito para que Diana saísse dele. Conseguiu segurar-se nas plantas da margem e saiu ensopada de lá, mas ainda viva, o que contava bem mais. Dunamis estava presa a sua cintura e ela sabia que a Catedral estava perto. A noite ia envelhecendo e tons de cinza mais claros já tomavam o céu. Ela tinha pouco tempo e esperava que Caetano já estivesse chegado lá. Diana era forte e gostava de uma boa luta, mas Caetano era esperto e ágil. Ela pensava que provavelmente o amigo havia encontrado uma forma de chegar à Catedral a tempo.
Encontrou a trilha e foi seguindo. Agora estava tudo resolvido e ela seria finalmente parte da guarda real. Seu sonho era ser a comandante deles e, tendo sobrevivido a essa prova, quem sabe um dia não chegaria lá. Esse pensamento a fez sorrir. Diana apertou o passo, avistando as costas da Catedral, mas parou quando viu que alguém estava no caminho a sua frente. Ela o reconheceria em qualquer lugar… Era Caetano. Estava parado de costas para ela, empunhando uma estranha espada em sua mão caída ao lado do corpo.
– Eu sabia que você já estaria aqui! – gritou ela, correndo ao encontro do rapaz. Abraçou-lhe pelas costas e sentiu-o ficar completamente rígido. Afastou-se um tanto magoada. Ele sempre a recebia calorosamente. Diana achou que, depois de tudo o que aconteceu, aquele momento seria bem especial e finalmente ela poderia se declarar.
– Você achou mesmo que poderia enganar os Espíritos da Floresta com um truquezinho barato de se jogar no rio? – ele perguntou, com uma voz gélida que Diana nunca tinha ouvido sair dele.
– Como você sabe disso, Caetano? – perguntou ela, afastando-se um pouco mais.
– Eu vejo tudo que meu mestre vê e faço tudo que meu mestre manda eu fazer – disse ele, virando-se para Diana. Seus olhos verdes, antes tão claros, agora estavam tomados como se musgos do fundo do pântano os tivessem invadido. Caetano tinha sangue em partes do corpo que não pareciam machucadas, e Diana se perguntava se era dele.
– Caetano, você não tem mestre! – tentou apelar para o bom senso do amigo. – Estamos terminando a prova, Caetano. Vamos para a Catedral, que o comandante nos dará finalmente nossas insígnias da guarda e poderemos tomar nossos postos de trabalho.
– Eu já tenho um posto de trabalho e este é muito mais honrado que qualquer guarda real! Eu trabalho para a floresta agora, para Nébula e Fyllo, Espíritos dessa floresta, muito mais antigos e importantes que qualquer rainha que já governou essas terras!
Diana começou a se desesperar. Aquele não era Caetano. Sua voz havia mudado, seus olhos e o seu comportamento. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse alterar aquilo, a não ser chegar à Catedral e pedir ajuda.
– Caetano, vem comigo, por favor! – tentou ela mais uma vez.
– Não, Diana, você virá comigo para servirmos juntos aos Espíritos – disse ele, andando em direção à garota. Ela o parou, apontando Dunamis em sua direção.
– Eu posso levá-la morta também, para eles não faz diferença – disse ele, levantando a espada e indo pra cima de Diana.
Eles começaram uma luta feroz. Caetano atacava com uma força descomunal. Diana já havia lutado diversas vezes com o amigo e sabia que aquela não era uma força comum. Ela ficou por um tempo resistindo na defensiva. Não queria machucá-lo, e ao longo daquela batalha ficava tentando chamar o amigo de volta à consciência.
– Por favor, Caetano, volta! Esse não é você! – suplicou Diana. No entanto, nada do que ela dizia adiantava. Ele só a atacava com mais força. Diana atacou pela primeira vez, fazendo um corte na perna de Caetano, que parou por um momento para olhar o ferimento. Diana aproveitou para insistir mais uma vez. – Eu não quero machucá-lo. Por favor, eu devia ter dito isso há muito tempo, mas eu… eu te amo, Caetano, e você não pode me deixar agora!
Ele tirou os olhos do ferimento e encarou a garota. Seus olhos pareciam um pouco mais suaves. Foi na direção dela com um sorriso delicado nos lábios. As lágrimas escorriam sem controle pelo rosto de Diana. Caetano aproximou-se e a abraçou. Diana conseguiu controlar a respiração a tempo de ouvi-lo dizer em seu ouvido:
– Ele não está mais aqui… – era a voz de Nébula.
Diana sentiu o frio e o medo congelando-a por dentro. Não era possível… Ela tivera um vislumbre de Caetano ou foi apenas seu coração que assim muito queria? Caetano a segurou pelos cabelos, agora já com o coque e as tranças desfeitas, e a fez ajoelhar; estava com a espada apontada para seu coração.
– Ser insignificante, não podes combater contra mim!
Diana viu um brilho que vinha em sua direção. Só poderia ser a espada que a mão de Caetano levantara para dar-lhe o golpe final. Ela iria olhar em seus olhos até o fim, até seu último segundo, até a luz deixar seus olhos e ela o encontrar do outro lado do véu.
Como um raio, viu o brilho decepar a cabeça de Caetano e ele afrouxar a mão enquanto seu corpo caia degolado no chão, a cabeça rolando para longe.
Tudo que aconteceu em seguida tornou-se como fleches na lembrança de Diana. Sentiu mãos que a erguiam do chão. E asas brilhavam a sua volta com os primeiros raios da manhã. Ela foi colocada nos degraus da Catedral; e depois de longa espera, que pareceram horas, o Comandante ali estava, felicitando-a por ter completado a prova. Ele perguntou por Caetano, e por muito tempo Diana não pôde contar o que havia acontecido. Ela foi condecorada e assumiu seu posto na Guarda Real, porém ficou na Capital – pois ir para as ilhas do Sul sem Caetano seria apenas mais um fardo para carregar por toda a vida.
Oh não…
Realizar um sonho e perder um amor?
Quanta culpa residindo no vazio da felicidade de Diana
i-i
Não é? Mas isso foi só o início…
Eu realmente não esperava por isso, malditos espíritos da floresta…
Nem fale… E essa foi só a primeira vez que eles apareceram! Entrar na floresta é sempre perigoso!